Ilusões da ótica de cada um
Uma amiga de muito tempo me disse, algumas vezes, que eu sou um poço de contradições. Ela tem lá suas razões, já enumerou incansavelmente minhas "inconsistências" e eu tive que concordar com parte delas. Eu lembrei disso hoje por conta de uma história acontecida ainda pela manhã, e que eu vou contar pra vocês.
Só para servir como fundo de cena, eu acredito, de verdade, que cada um seja responsável pelos seus próprios atos e que não me cabe interferir na vida alheia, de jeito nenhum. Sou contra até salva-vidas na praia, pra vocês terem uma idéia. Acho o cúmulo o cara se jogar na maré perigosa pra salvar um fulano que, desrespeitando os sinais de perigo, dá uma de super-macho e entra no mar, pondo em risco a vida do coitado que está lá, pedindo pra ninguém cair na água.
Pois bem, hoje, enquanto passava eu pela catraca do metrô, um homem de, aproximadademente, 40 anos, completamente alcoolizado (às 10h da manhã) tentava colocar o bilhete com muita dificuldade para conseguir passar. Já lá embaixo, esperando o trem chegar, vi o homem sentando no chão, muito, mas muito bêbado mesmo. Ele apoiou os cotovelos nos joelhos, cobriu o rosto com as mãos, os olhos fechados, balançando a cabeça, zonzo, zonzo. Um funcionário do metrô ficou bem perto, acho que para cuidar, para que ele não caísse no vão quando quisesse embarcar.
Eu não conseguia desgrudar o olhar daquele homem. Pensei no coração dentro dele, batendo, jorrando sangue para o resto do corpo. Todos os órgãos funcionando, uma vida viva, uma engenharia perfeita sendo desperdiçada pela mente enfraquecida, doente, sem perspectiva alguma de nada. Acho que foi nesse momento que identifiquei em mim esse desejo de "salvar" o outro, tentar fazê-lo enxergar em si a possibilidade de mudança, reagir, sei lá. Acreditar em alguma coisa.O burlesco foi entender porque aquela cena me causou tanto interesse: eu percebi quanto desperdício eu mesma provoco em minha vida, quantas vezes eu própria apóio meus cotovelos nos joelhos, cubro os olhos, sem querer ver muita coisa, sem reagir, espernear. Teve a contrapartida, também: pensei em quantas coisas mais eu posso fazer se aumentar em, apenas, 10% a minha disposição, o meu gás. Na hora, me passou pela cabeça "ah, não, mas aí eu não terei tempo pra mais nada". Mais nada o que? Mais nada o que, Acácia Maria??? Que loucura é essa, jacaré? Isso é o que significa colocar os carros na frente dos bois: não começar por achar que não vou dar conta.
Aí entra o discurso da minha amiga quando diz que eu confusa: eu quero uma coisa, acredito naquilo e faço outra; digo que sou indiferente mas me emociono até com cachorro olhando pelo portão da rua; falo por aí que não adianta isso e aquilo e, quando vejo, estou lá, chafurdando no desdito. Como ela mesma gosta de dizer, "és toda reservada, mas não tens armários na tua casa, não escondes nada, tuas coisas estão todas à mostra para quem quiser ver". É, Fê, tens razão, fluminense do interior-Riba.
No fundo, acho que tudo é assim mesmo: ora de um jeito, ora de outro. A gente pensa radicalmente de uma maneira, aí troca de lugar, enxerga da perspectiva do outro e, voilá, já escreve outra história. Não vejo contradição nos meus rabiscos, não. O que vejo é essa dança das cadeiras, a tentativa de ver sob outro ângulo, o desejo de mudar de lado, de vez em quando.
"Tudo é impermanente. Tudo que está sujeito ao surgimento está sujeito à cessação", palavras do Buda.
E mais: "a compreensão da impermanência nos proporciona confiança, paz e alegria. A impermanência não conduz obrigatoriamente ao sofrimento. Sem ela, a vida não existiria. Sem a impermanência, sua filha não cresceria e se tornaria uma linda mulher. Sem a impermanência, os regimes políticos opressivos nunca mudariam. Mas nós achamos que a impermanência nos faz sofrer. Não é a impermanência que nos faz sofrer, mas sim o desejo de que as coisas sejam permanentes, quando na verdade não são. (The Heart of the Buddha's Teaching)
Comentários
saudade de falar essas coisas pra vc!!!
bjão, bjão, bjão
bj