Desapegar ou valorizar?


Li em algum lugar que é preciso treinar o desapego. Assunto complicado e difícil, principalmente para quem precisou se acostumar demais às perdas. Pois é, o grande problema com o tal do desapego é que ele, frequentemente, é associado a essa palavrinha dolorosa: perda. Talvez a diferença esteja na semântica e não no conteúdo da palavra. Bora ver.

Vamos imaginar que você tenha trabalhado muito arduamente para comprar um carro e que precise dele para trabalhar e dar mais conforto à família. Tá, é um bem material e deveríamos estar acima dessas coisas. Bobagem. Grandessíssima bobagem. Vivemos num mundo em que rejeitar a matéria como bem faz tão mal quanto ser escravo dela. Continuemos: você foi lá e comprou o carro. E aí, só porque ouviu dizer que ter apego a esse bichinho que quis tanto é sinal de mediocridade, você não sofre quanto lhe roubam, é isso?

Numa outra situação, você, depois de muito tempo batendo a cabeça, encontrou um grande amor, daqueles que valem a pena o investimento. Para não parecer desesperado, você usa o manto blasé do descolado e superior, mesmo correndo o risco de parecer tão desinteressado que afugente seu par querido.

E, então? O discurso bacana do desapego serviu para mantê-lo feliz? Claro que não, claro que nunca, e sabe por que? Porque desapegar não tem nada a ver com desvalorizar, nem com não apropriar-se do que lhe pertence, do que é seu por direito e conquista.

Penso eu, e aqui vai uma prática que me tem sido árida porém construtiva, que o único desapego que devemos treinar é o desapego do controle. Parar de tentar controlar a todo custo todos os fatos, pessoas e sentimentos pode ser, sim, a cura para todos os males.

De resto, sou adepta convicta de que valorizar e lutar pelo que construímos é saudável, honesto, justo e humano. Afinal, a nossa história possui registros físicos devidamente caracterizados pelos nossos bens e amplamente testemunhados por nossas relações. Havemos, apenas, que, mais uma vez, praticar o discernimento e o olhar claro.

A verdade a nosso próprio respeito e o conhecimento que mantemos vivo sobre ela é o que nos trará a alegria e a tranquilidade para qualquer outro exercício: seja do desapego, seja da luta para manter o que desejamos, seja para desacreditar em qualquer frase feita que nos seja imposta.

Afinal, pensar para existir, como sugeriu Descartes, é o único caminho para conhecer a si mesmo, como já dizia Sócrates.

Comentários

Douglas disse…
Sensacional! Adorei o seu texto! Parabéns!

Postagens mais visitadas deste blog

Monstro da palha

O curioso caso de Benjamin Button

Borboletas reais